segunda-feira, 15 de março de 2010

Como trair sua mulher... com ela mesma! Parte 2

Envolvimento: sobre como congelamos nossos parceiros


Na Cabana PdH, às vezes me assusto com o modo de que alguns caras falam de suas parceiras. Se o tema é relações paralelas, traição, ciúme, ele afirma com toda a certeza do mundo: “Ela nunca aceitaria isso, sofreria, acabaria com tudo”. Se o tema é sexo, mais certezas: “Ah, não, isso já tentei mil vezes, ela não gosta. Fazer o quê?”.
Minhas respostas são sempre variações da seguinte pergunta um tanto cruel: “Imagine outro cara com ela. Você tem certeza absoluta de que ela agiria do mesmo modo?”. Sempre desconfio de caras que dizem conhecer suas mulheres.
O envolvimento usual entre duas pessoas parece causar uma crescente solidificação de identidades. Quanto mais eles se conhecem, mais excluem outras possibilidades. Fecham espaço para surpresas e ainda tem a coragem de reclamar disso ao fim: “Não dava mais, acabei. Era tudo muito previsível, ele parou de me surpreender…”. A amiga deveria responder: “Mas é claro! Você mesmo impedia o cara de te surpreender”.
Num certo sentido, somos todos um pouco mães de nossos parceiros:

–Filho, por que você tá comendo esse mousse da sua tia? Você não odeia qualquer coisa com maracujá?

–Odiava, mãe, odiava. Mudei desde que sai daqui.

–Tá bom, mas come esse pavê que eu fiz pra você.

–Não gosto de pavê.

–Mas você adora pavê, filho! Lembro de como raspava a tigela… Toma, já coloquei pra você.

Desenvolvemos um padrão de relacionamento com o outro, começamos a surgir de um jeito, começamos a vê-lo de um jeito e, quando menos percebemos, nunca mais desconfiamos de que talvez o outro seja muito mais do que aparece para nós, de que outros o ativem de outro modo, de que ele encarne outros personagens com outras risadas, outras piadas, outros olhares, outros gestos. Às vezes vamos com a namorada visitar um primo das antigas e então nos surpreendemos com ela falando e olhando diferente diante dele. É como se fosse uma mulher que nunca havíamos encontrado!
O amante naturalmente possui essa sabedoria que muitas vezes falta ao galã principal. Ele sabe que a mulher tem uma outra relação, de que tem uma vida própria na qual provavelmente incorpora várias identidades. Ele mantém um desconhecimento saudável, uma espécie de ceticismo generoso. Ao ser perguntado sobre a amante, diz: “Não sei como ela agiria”.
Pensando bem, até mesmo os amantes sofrem da síndrome de crença mórbida do marido. Eles também congelam… Contudo, pela consistência de minha argumentação, vamos supor que estamos falando do arquétipo do amante, que tal? ;-)
O ponto é: sua namorada não é sua namorada, sua esposa não é sua esposa. Muito antes de ser sua namorada, ela foi namorada de outros, com os quais agia diferente, pensava diferente, sorria diferente, trepava diferente. Muito antes de ser namorada, ela é filha. Antes de ser filha, é mulher. É aluna, professora, jogadora de basquete, mestre em psicologia. Ou dentista, praticante de ioga, vocalista.
Ela é a liberdade de ser várias, cada uma com configurações corporais, expressões, movimentos, pensamentos específicos. Ela se conjuga sempre no plural. É um hardware sempre expansível com um software atualizado minuto a minuto (que as leitoras me perdoem, mas tem muito cara de TI que lê esse blog). É cambiante, é o vir-a-ser que já está em outro lugar no instante posterior ao nosso dedo apontado.
Ainda que aja com certos padrões, sua verdadeira natureza escapa de qualquer previsão. Impossível abraçá-la ou percorrê-la completamente. Ela é chuva, fogo, raio. Igual a você.

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